“Pequeno mapa do tempo”, 2021, canto, Rio de Janeiro
Essa música foi lançada por Antonio Carlos Belchior em 1977 em seu álbum “Coração selvagem”, em meio ao período da ditadura militar brasileira. Ela fala do medo, o medo da morte, o medo da guerra, o medo do exílio, o medo da tortura, o medo da prisão. Da cantiga popular do Piauí: “Medo, o meu boi morreu, o que será de mim? Manda buscar outro, maninha, no Piauí!”, Belchior fala do medo como algo que morre e logo surge outro em seu lugar. Pra falar do tamanho de seu medo e como ele só cresce, ele traz as cidades e estados brasileiros como se ele mesmo fosse algo que integra tudo isso.
Quando muitas vidas morrem em volta de nós, quando tudo o que acreditamos que nos era necessário para viver morre (talvez até o sentido da nossa própria existência) ainda há aqueles que sobrevivem. O medo ainda está lá dentro e sabemos que ele é gigante, mas quando se chega muito fundo é possível perder também o medo de ter medo! Ainda estamos vivos mesmo que ardendo de tanto doer! E chega um momento em que não faz mais sentido resistir à dor.
De tanto conviver com o medo há a possibilidade de reconhecê-lo. Ao se acostumar com ele, chega um momento em que olhar para ele já não dói mais tanto assim. É quando podemos deixar de olhá-lo por uns instantes e então ocorre algo mágico: se abre um espaço para a coragem estar presente mais uma vez. Vamos com a coragem, mas o medo ainda está lá. Vamos todos juntos! A coragem só apareceu porque ao olhar para o medo fixamente podemos ver através dele. E a coragem é a sombra do medo. Agora podemos encará-la de frente: a nossa verdadeira face. O medo não é o que somos, mas ele pode nos revelar e é a coragem quem nos diz.
Esses instantes em que apenas somos podem ficar mais presentes quando encontramos outras pessoas que tenham sentido algo semelhante e que, como nós, descubram que da dor e do medo pode vir o que somos, talvez sonhos de realidades ainda não construídas, alguns pequenos esboços. É quando decidimos transformar a dor em luta para que a vida não seja morte vivida. A morte é das nossas outras versões quando de medo em medo, alçamos novas descobertas e aprendizados. Não resistir à dor é transformá-la em amor, amor à vida: à nossa própria e à do outro porque amor é movimento, amar, é força expansiva, criativa.
Lutar pela vida, criá-la e expandi-la quando muitos querem o império da morte não é deixar de doer. A força não vem da ausência da dor, mas vem exatamente dela. Quando a dor é tamanha e nunca deixa de doer porque as feridas são muitas, profundas, ela continua no nosso corpo e ao nos depararmos na realidade com dor semelhante, todas são revividas no presente.
Viver em tempos de ditadura, viver em tempos de guerra, quando se sente a dor e a morte é realmente devastador! O nosso coração fica selvagem! Controlar é tudo o que a gente quer, mas a gente nunca pode mesmo controlá-lo. Se a vida sempre dá um jeito de viver, um coração ferido não perde a capacidade de bater e bate assustadoramente!
A vida: a gente nunca pode mesmo controlar, mas um coração pode sempre amar. Enquanto há vida haverá amor, enquanto há amor haverá vida ou será a mesma coisa? Deveria! Mas para amar a gente precisa se curar. Tempo, cuidado, amor também é remédio. Assim, de um jeito ou de outro, a vida sempre dá um jeito.
Essa lição vem de nossos ancestrais que resistiram e sobreviveram às chacinas, aos massacres, às ditaduras, à fome, à morte cotidiana, de todo povo que de alguma forma deixou o seu legado nos ensinando como fazer. Seus ensinamentos vivem na nossa resistência, na nossa luta e na nossa cura. De um jeito ou de outro, o amor resistiu, a vida resistiu e nos trouxe até aqui. Certamente que não foi para morrermos de medo!
E o medo? Será que ele é de morrer ou é de ver quem realmente somos?
Procuro em meus dias lutar para a minha cura, para descobrir quem sou e contribuir para a cura coletiva. Numa sociedade com muitas doenças tudo isso é difícil, mas tudo é processo e juntes vamos conseguir porque a vida sempre dá um jeito.
Qual realidade temos coragem de construir juntes?
@escolademusicala
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