“Pequeno mapa do tempo”, 2021, canto, Rio de Janeiro

Ana Paula de Souza Campos
3 min readJul 20, 2021

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Essa música foi lançada por Antonio Carlos Belchior em 1977 em seu álbum “Coração selvagem”, em meio ao período da ditadura militar brasileira. Ela fala do medo, o medo da morte, o medo da guerra, o medo do exílio, o medo da tortura, o medo da prisão. Da cantiga popular do Piauí: “Medo, o meu boi morreu, o que será de mim? Manda buscar outro, maninha, no Piauí!”, Belchior fala do medo como algo que morre e logo surge outro em seu lugar. Pra falar do tamanho de seu medo e como ele só cresce, ele traz as cidades e estados brasileiros como se ele mesmo fosse algo que integra tudo isso.

Quando muitas vidas morrem em volta de nós, quando tudo o que acreditamos que nos era necessário para viver morre (talvez até o sentido da nossa própria existência) ainda há aqueles que sobrevivem. O medo ainda está lá dentro e sabemos que ele é gigante, mas quando se chega muito fundo é possível perder também o medo de ter medo! Ainda estamos vivos mesmo que ardendo de tanto doer! E chega um momento em que não faz mais sentido resistir à dor.

De tanto conviver com o medo há a possibilidade de reconhecê-lo. Ao se acostumar com ele, chega um momento em que olhar para ele já não dói mais tanto assim. É quando podemos deixar de olhá-lo por uns instantes e então ocorre algo mágico: se abre um espaço para a coragem estar presente mais uma vez. Vamos com a coragem, mas o medo ainda está lá. Vamos todos juntos! A coragem só apareceu porque ao olhar para o medo fixamente podemos ver através dele. E a coragem é a sombra do medo. Agora podemos encará-la de frente: a nossa verdadeira face. O medo não é o que somos, mas ele pode nos revelar e é a coragem quem nos diz.

Esses instantes em que apenas somos podem ficar mais presentes quando encontramos outras pessoas que tenham sentido algo semelhante e que, como nós, descubram que da dor e do medo pode vir o que somos, talvez sonhos de realidades ainda não construídas, alguns pequenos esboços. É quando decidimos transformar a dor em luta para que a vida não seja morte vivida. A morte é das nossas outras versões quando de medo em medo, alçamos novas descobertas e aprendizados. Não resistir à dor é transformá-la em amor, amor à vida: à nossa própria e à do outro porque amor é movimento, amar, é força expansiva, criativa.

Lutar pela vida, criá-la e expandi-la quando muitos querem o império da morte não é deixar de doer. A força não vem da ausência da dor, mas vem exatamente dela. Quando a dor é tamanha e nunca deixa de doer porque as feridas são muitas, profundas, ela continua no nosso corpo e ao nos depararmos na realidade com dor semelhante, todas são revividas no presente.

Viver em tempos de ditadura, viver em tempos de guerra, quando se sente a dor e a morte é realmente devastador! O nosso coração fica selvagem! Controlar é tudo o que a gente quer, mas a gente nunca pode mesmo controlá-lo. Se a vida sempre dá um jeito de viver, um coração ferido não perde a capacidade de bater e bate assustadoramente!

A vida: a gente nunca pode mesmo controlar, mas um coração pode sempre amar. Enquanto há vida haverá amor, enquanto há amor haverá vida ou será a mesma coisa? Deveria! Mas para amar a gente precisa se curar. Tempo, cuidado, amor também é remédio. Assim, de um jeito ou de outro, a vida sempre dá um jeito.

Essa lição vem de nossos ancestrais que resistiram e sobreviveram às chacinas, aos massacres, às ditaduras, à fome, à morte cotidiana, de todo povo que de alguma forma deixou o seu legado nos ensinando como fazer. Seus ensinamentos vivem na nossa resistência, na nossa luta e na nossa cura. De um jeito ou de outro, o amor resistiu, a vida resistiu e nos trouxe até aqui. Certamente que não foi para morrermos de medo!

E o medo? Será que ele é de morrer ou é de ver quem realmente somos?

Procuro em meus dias lutar para a minha cura, para descobrir quem sou e contribuir para a cura coletiva. Numa sociedade com muitas doenças tudo isso é difícil, mas tudo é processo e juntes vamos conseguir porque a vida sempre dá um jeito.

Qual realidade temos coragem de construir juntes?

@escolademusicala

#canto

#belchior

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Ana Paula de Souza Campos
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Artista multimídia, poetisa e cantora da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro (em constante construção)!