“Crianças/crenças feridas que curam”, crônica, 2021

Ana Paula de Souza Campos
5 min readJul 20, 2021

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Quando eu era criança estudei por muitos anos numa escola cristã. Não podia falar palavrão, não podia usar roupa acima do joelho, não podia usar cordão nem brinco grande porque diziam que numa briga poderiam puxar. A tia que dava aula de ensino bíblico tinha olheiras tão grandes que me davam medo. Eu não entendia como Moisés tinha tirado água da pedra. Na minha cabeça só vinha o ditado: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura!”. Na escola não podia namorar de jeito nenhum! Quem namorava ganhava dura da diretora. E se chegasse na diretora, chegava nos nossos pais.

Minha mãe era a do tipo que quando eu falava que tinha tirado 9 na prova, ela dizia: “Devia ter tirado 10!”. Eu tenho uma irmã gêmea que se chama Ana Carolina e a gente sempre competia pra ser melhor que a outra. Todo mundo sempre comparava a gente em tudo: “A Carol é a mais bonita!”; “A Paula é a mais inteligente!”; “A Carol é a mais magra!”; “A Paula é a mais tímida!”; “A Carol é a mais engraçada!”. Nessas comparações eu chegava à conclusão de que eu era a mais feia, gorda, tímida e sem senso de humor. Afinal de contas, para que servia mesmo a inteligência? Qual era mesmo o meu valor?

Pode parecer tudo uma grande besteira para quando se é uma adulta, mas para uma criança tudo isso doeu muito. Eu escrevia nos meus diários e depois trancava com chave. Eu tinha uma boneca que era muito feia, mas eu gostava muito dela: a Maria. Eu tinha um ursinho de pelúcia que eu chamava de “Polim” porque lembrava o meu cachorro “Chapolim” que eu também gostava muito. Eu conversava com a Maria e o Polim, eu contava tudo para eles.

Num dia eu estava tão triste porque os garotos que eu gostava sempre davam em cima da minha irmã que eu escrevi no diário que só quem me entendia eram o Polim e a Maria. A minha irmã quebrou o cadeado e leu o meu diário. Ela riu de mim por eu dizer que só eles me entendiam e me disse que eles eram apenas um ursinho e uma boneca. Eu disse para ela que eles eram meus amigos! Eu fiquei tão revoltada que eu bati na minha irmã! Minha mãe separou a gente e disse que não queria ouvir mais um “pio” de nós senão ela ia bater na gente com vara de goiaba!

Depois que ela saiu eu e Carol começamos a falar em libras mandando a outra “tomar no cu” e xingando a outra de tudo que era nome soletrando as palavras no vento! Minha mãe achou estranho o silêncio e foi verificar o que estava acontecendo. Quando ela chegou no quarto e viu a gente fazendo sinais com as mãos ela começou a rir. Todas nós rimos e minha mãe conta essa história até hoje.

Eu fiquei “de bem” com a Carol de novo depois disso. Nós sempre ficávamos bem uma com a outra apesar de tudo. O nosso amor e a nossa amizade sempre foram mais fortes que qualquer ódio, raiva ou inveja que as pessoas nos ensinavam a sentir uma pela outra. No fundo a gente sentia a mesma rejeição. Todos temos a nossa beleza, a nossa inteligência e capacidade de muito mais. A realidade externa é sempre limitadora, mas pode ser também potencial criativo. No fundo nós não queríamos ser melhor que a outra, a gente queria descobrir as coisas, viver, ser amigas, poder contar uma com a outra, fazer algo de “bom” para o mundo. Eu aprendi a admirá-la, a me inspirar nela. Somos grandes parceiras.

Hoje eu percebo que a nossa aparência diz muito pouco sobre quem a gente realmente é, mas somos ensinades a achar que ela é o que mais importa, importa muito mais do que o que há em nosso coração, do que o que há na nossa trajetória, do que está contido nas nossas ações cotidianas.

Também aprendi que mesmo as pessoas com as melhores das intenções podem fazer muita merda. Mesmo as pessoas que você mais ama podem fazer muita merda. Nós também podemos fazer muita merda, inclusive com nós mesmes ao acreditar nas merdas que nos contam sobre nós mesmes. Ninguém sabe o tamanho da merda que está dentro da gente só olhando para a nossa cara. E mesmo com tudo isso, nós não somos esse monte de merda. Nós somos o que fazemos com tudo isso.

Temos que aprender a colocar a merda para fora, a limpar dentro da gente isso tudo depois de olhar para essas coisas. E tudo é um processo e tudo é uma descoberta. É sempre doloroso.

Nós não precisamos competir mesmo que sempre nos comparem.

Com quem você já foi comparado e saiu perdendo?

Só cada um sabe o tamanho da sua ferida e o que fez para lidar com ela.

Quiseram me roubar o direito de ver a minha irmã gêmea idêntica como minha igual e eu precisei lutar contra isso para amá-la.

Não foi a nossa aparência idêntica que nos tornou iguais, mas o nosso amor pela outra, independente de todas as merdas.

Nós somos iguais, nós somos diferentes dependendo da nossa aparência e independendo dela.

Eu vou amá-la sempre, independente do que ela fizer, mas ela é a minha irmã e é igual a mim.

Será que a gente consegue amar quem é diferente de nós?

Será que a gente consegue amar também quem já nos fez sofrer?

Até onde vai a nossa capacidade de amar?

Será que a gente odeia o outro ou odeia algo que ele é/tem e que a gente gostaria de ter/ser?

Será que a gente consegue olhar também para aquilo que nos iguala independente da nossa aparência e das nossas dores?

Você lembra das suas feridas de criança? Será que elas ainda machucam?

Se olharmos para o que nos machuca podemos nos curar.

Será que é possível não sofrer? Não!

Mas há muitas maneiras de se curar!

Todes temos o direito de existir e ser feliz e ser alegre!

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Ana Paula de Souza Campos
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Artista multimídia, poetisa e cantora da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro (em constante construção)!